Refugiados de guerra, angolanos cegos querem ficar no Brasil

(Terra, 19/03/2015) De Angola, 20 crianças cegas cruzaram o Atlântico e desembarcaram no Brasil em 2001, contando com a ajuda de duas ONGs. Elas fugiram de uma guerra civil de 26 anos – com alguns períodos curtos de paz. Dez dessas crianças ainda vivem em Curitiba (PR), têm um grupo musical, fizeram amigos, namoradas e namorados, estudaram e entraram na faculdade. Agora, com seus vistos de estudante prestes a vencer, em abril, antes de concluídas as graduações, o governo angolano parou de pagar as bolsas com que se mantinham e quer que eles regressem. Os jovens, porém, lutam para terminar os estudos e conseguir um visto de permanência.

Os angolanos criaram páginas nas redes sociais para contar suas histórias e mobilizar apoio para permanecerem no Brasil. Famosos como Bruna Marquezine, Bruno Gagliasso, Thaila Ayala e o senador Romário compartilharam posts e se solidarizaram com a causa. Afinal, muitos deles já se sentem tão brasileiros quanto angolanos, dançam samba e não abrem mão de seus times do coração.

Entre os jovens, há os que querem ficar e aqueles que desejam voltar para Angola (Foto: Yuri Sardenberg / Divulgação)
Entre os jovens, há os que querem ficar e aqueles que desejam voltar para Angola (Foto: Yuri Sardenberg / Divulgação)

“Meu objetivo é terminar a faculdade e retornar para Angola. Eu quero criar uma escola para cegos lá”, diz Wilson Antônio Kapingana André Madeira, conhecido como Will Bantu. Ele, que estuda psicologia, é o mais velho de todos, veio com 14 anos (hoje tem 28), enquanto os outros tinham idade entre seis e 11 anos.

Enquanto a maioria ficou cega por causa do sarampo, Will perdeu a visão, aos quatro anos, devido à explosão de uma granada. “Estava no quintal de minha casa, brincando com meus dois primos, mais ou menos da mesma idade que eu, quando um vizinho, até então amigo da nossa família, apareceu no portão e ofereceu-nos um objeto que apitava, dizendo que era um brinquedo. Assim que ele foi embora, aconteceu a explosão: o objeto era uma granada; e o vizinho era militante de uma tropa rebelde; o ato dele fora um atentado contra o meu pai, que era militar do governo (era muito comum acontecer algo assim). Na ocasião, os meus primos morreram imediatamente, e eu apenas perdi os meus olhos, graças a Deus”, escreveu ele.

O grupo chegou ao País por iniciativa de duas entidades, a ONG angolana Fundação Eduardo Santos (Fesa) e o Fundo Lwini. Desembarcaram inicialmente em Minas Gerais, mas, depois de seis meses, dez foram para o Instituto Paranaense de Cegos (IPC), em Curitiba, e seis para Florianópolis. Quatro regressaram para Angola.

O governo do país africano pagava os estudos, o aluguel de duas casas em Curitiba, uma no bairro de Vista Alegre e outra no Bairro Alto, e cerca de R$ 1 mil mensal para cada um suprir gastos com alimentação, roupa, água e luz. No fim de 2014, a bolsa foi cortada, assim como o aluguel da residência no Bairro Alto. Todos passaram a compartilhar o teto em Vista Alegre e sobreviver com doação de amigos.

A justificativa para a interrupção dos pagamentos é que, com o baixo preço do barril do petróleo no mercado internacional, a economia angolana, fortemente dependente da commodity, entrou em crise. O governo está tendo que cortar gastos, e um deles é o dinheiro pago aos estudantes daqui.

Will conta que conversou com o consulado angolano para saber se teriam alguma ajuda se fossem para o país africano. “Tentamos conversar com eles. Perguntamos: ‘tudo bem, se a gente voltar, vocês pelo menos vão nos ajudar a encontrar alguma maneira de nos mantermos, de vivermos lá?’ Porque alguns de nós, por exemplo, não têm família. Alguns que têm perderam contato há muito tempo”, diz. “Então nós negociamos com eles. Olha, será que vocês vão nos ajudar lá, vão nos colocar em algum lugar, pelo menos nos primeiros meses para que possamos nos adaptar, achar emprego. Como é que vamos sobreviver? Eles disseram: ‘olha, a gente não se responsabiliza por nada. Vocês vão, quem tiver família vai pra família, quem não tiver a gente vê o que faz. Mas não podemos te garantir nada’”, relatou Will.

“É diferente se a gente regressar daqui a dois anos, já preparados, com diploma para botar a mão na massa”, explica. Entre os dez, tem estudante de Direito, Educação Física, Jornalismo, Ciência da Computação e Ciência Políticas. Eles mantêm ainda, há muitos anos, o Coral Cantores de Angola, grupo de música folclórica africana.

Alguns, porém, querem continuar morando no Brasil. “Tem gente que quer ficar, está mais acostumando aqui do que lá. Tem mais de brasileiro que de angolano por causa da idade com que veio pra cá”, relata Will.

Um pedido de visto de permanência foi encaminhado pela Defensoria Pública da União, ao Conselho Nacional de Imigração, com base no artigo 12º da Constituição, que permite se naturalizarem brasileiros “os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral”. Enquanto aguardam o resultado, eles compartilham uma petição online que pede suas permanências e o direito de terminar os estudos.

Pedro Rocha

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