Migração no Brasil: inclusão do outro não é algo natural e automático, mas um trabalho de abertura
(Adital, 12/12/2014) Para a irmã Rosita Milesi, diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e membro do Setor Mobilidade Humana da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a atitude do governo brasileiro em relação à situação imigratória que o país vive desde 2010 é um ponto positivo na questão dos direitos humanos, “concedendo em muitos casos vistos humanitários para aqueles que não se preenchem os requisitos da definição de refugiado”. Entretanto, conforme já abordado na série de reportagens #MigraçõesAdital, não há mais como postergar a reforma da Lei de Imigração brasileira.
A situação econômica favorável não é a única explicação para o aumento na imigração ao Brasil, mas também a forma na qual estamos recebendo esses novos brasileiros. “É o fato do Brasil propiciar a obtenção dos documentos de estadia e carteira de trabalho, o que lhes possibilita viverem e trabalharem regularmente no país”, explica irmã Rosita.
Não vivemos uma “crise migratória”. Segundo explica a scalabriniana, que também é advogada, “o número de estrangeiros residentes no país está bastante aquém de 2 milhões (…) no Brasil, o percentual de imigrantes é inferior a 1% da população, uma percentagem muito pequena, não apenas em relação aos tradicionais polos de atração mundiais, mas também em relação a outros países da região sul-americana, como Argentina, Venezuela e Chile”, defende irmã Rosita.
“A imigração deve ser interpretada como uma oportunidade, não apenas para garantir uma vida digna às pessoas forçadas a migrarem em busca de proteção ou de condições mínimas e decentes de vida, mas também para reforçar no país o projeto de uma sociedade inclusiva, solidária e acolhedora” acredita a missionária, ao reforçar que devemos ter uma visão positiva do processo migratório, evitando erros de análise muitas vezes explorados por políticos inescrupulosos, como observamos em países que vivem essa questão há mais tempo.
Adital: O que representa para a diplomacia brasileira o projeto de lei de reconhecimento da condição de apátrida? Há alguma expectativa quanto ao número de beneficiados?
O Brasil foi um dos primeiros países da região latino-americana a ratificar a Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas e assinou também a Convenção de 1961 para Redução dos casos de Apatridia. Em 2007, por meio da Emenda Constitucional nº 54, o Brasil alterou a Constituição Federal a fim de eliminar casos de apatridia de filhos de brasileiros nascidos no exterior. Em continuidade à reflexão e iniciativas voltadas à proteção de Apátridas e à redução dos casos de Apatridia, em 2014, o Ministério da Justiça apresentou um Anteprojeto de Lei sobre Apatridia, que prevê o procedimento de determinação da condição de apátrida, nos mesmos moldes do procedimento de refúgio, atribuindo ao Conare [Comitê Nacional para Refugiados] a competência para decidir sobre os casos de apatridia que ocorram com pessoas que se encontrem ou venham ao país buscando alguma forma de proteção. Embora não haja como estimar o número dos potenciais beneficiários, a aprovação do Anteprojeto significaria uma importante conquista para a proteção das pessoas apátridas, assim como o Brasil seria pioneiro na regulamentação do tema na América Latina e Caribe. A diplomacia brasileira, que tem enfatizado o papel de liderança do Brasil, pode ter aqui, além do benefício aos apátridas, mais uma valiosa iniciativa a partilhar com outros países da região. Se nos anos 1990, o Brasil foi o pioneiro a adotar uma legislação de proteção a refugiados, agora, o país tem a oportunidade de debater e adotar um importante marco legal nacional de proteção aos apátridas.
Adital: Pelo Censo [do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE], o Brasil possuía, em 2010, cerca de 410 mil estrangeiros residindo no país – uma queda constante, em 1970, eram mais de 1 milhão. Essa onda migratória que o Brasil vem vivendo nos últimos anos alterou essa tendência? Qual a razão para o aumento no número de imigrantes?
Nesse momento, o Brasil, do ponto de vista migratório, é, ao mesmo tempo, um país de emigração e de recepção de migrantes. As razões do aumento da imigração são várias: a estabilidade econômica e o baixo desemprego; a imagem internacional positiva do país, e não apenas de um ponto de vista econômico; a crise que vem afetando, desde 2008, as economias de numerosos polos tradicionais de atração. Cabe mencionar, ainda, um aspecto destacado, reiteradamente, pelos próprios imigrantes, que é o fato do Brasil propiciar a obtenção dos documentos de estadia e carteira de trabalho, o que lhes possibilita viverem e trabalharem regularmente no país. Sabem que, num primeiro momento, tais documentos são temporários, mas alimentam sempre absoluta e firme esperança de que os terão de maneira definitiva. Há também outros fatores específicos, como o caso dos haitianos e a presença do contingente brasileiro no Haiti; os ganeses, que chegaram ao Brasil durante a Copa do Mundo; situações de tráfico de pessoas e de migrantes. A novidade da recente imigração é também a diversificação dos fluxos: não são apenas europeus ou latino-americanos que chegam ao país, ou migrantes oriundos de países lusófonos, mas também ganeses, sírios, senegaleses, bengalis, paquistaneses, entre outros. Não é por acaso que aumentaram muito também as solicitações de refúgio que, segundo o Ministério da Justiça, chegaram a 6,9 mil, em 2014, contra os 5,6 mil, em 2013, e 2 mil, em 2012. Enfim, a nova imigração inclui não apenas a tradicional “imigração econômica”, mas também migrantes forçados, vítimas de tráfico ou refugiados, que fogem de guerras e conflitos, tanto antigos quanto recentes.
Adital: Podemos dizer que vivemos uma “crise migratória”? Como o Estado brasileiro vem se comportando na recepção desses povos migrantes?
Entendo que não há porque falar em “crise” migratória. Segundo estimativas disponíveis, tanto do Ministério da Justiça quanto do próprio IBGE, o número de estrangeiros residentes no país está bastante aquém de 2 milhões, considerando também aqueles que estão presentes de forma administrativamente irregular. Ou seja, no Brasil, o percentual de imigrantes é inferior a 1% da população, uma percentagem muito pequena, não apenas em relação aos tradicionais polos de atração mundiais (União Europeia, EUA, Canadá, Japão, Austrália), mas também em relação a outros países da região sul-americana, como Argentina, Venezuela e Chile. A questão de fundo é o gerenciamento do fenômeno. Nessa ótica, a nova imigração deve ser interpretada como uma oportunidade, não apenas para garantir uma vida digna para as pessoas forçadas a migrarem em busca de proteção ou de condições mínimas e decentes de vida – “survival migrants”, segundo expressão de Betts [Alexander Betts, estudioso britânico] – mas também para reforçar no país o projeto de uma sociedade inclusiva, solidária e acolhedora.
O governo brasileiro tem tido, até agora, uma postura bastante aberta em relação aos novos imigrantes, concedendo, em muitos casos, vistos humanitários para aqueles que não preenchem os requisitos da definição de refugiado, segundo a legislação respectiva. Além disso, cabe lembrar que houve uma anistia em 2009. Mais recentemente, ocorreu a 1ª Conferência de Migrações e Refúgio, a Comigrar, que debateu, de forma capilar e aprofundada, temáticas migratórias, com a participação protagonista dos próprios migrantes. Sempre em termos governamentais, a grande lacuna que é, ao mesmo tempo, um aspecto negativo, representado pela ausência de uma Lei de Migrações, que responda aos desafios contemporâneos, pois o atual “Estatuto do Estrangeiro”, de 1980, rege-se e trata a questão migratória na ótica da Segurança Nacional e outros aspectos defasados e superados. Nesse sentido, é imprescindível a elaboração de uma nova Lei de Migrações, que seja o resultado de uma política migratória norteada pela defesa e promoção dos direitos dos migrantes, pelo reconhecimento de sua cidadania e pelo direito de migrar.
Adital: A sociedade brasileira está preparada para um aumento na pressão migratória?
Considero importante reafirmar que, por enquanto, não há “pressão” migratória. Há uma imigração que se acentuou muito nos últimos tempos e, ao que tudo indica, se estenderá no tempo. Sem dúvida, o Brasil, nós todos e todas, devemos avançar em muitas medidas e políticas para podermos tratar a questão como um fato social, de modo a acolher e promover a integração dos imigrantes. É importante identificar e rechaçar casos de racismo, como os que vimos recentemente no país, no futebol. Ocorreram, igualmente, episódios de discriminação contra migrantes internos. Finalmente, a chegada dos haitianos tem gerado comportamentos e tomadas de posição que questionam e nos fazem refletir profundamente sobre a “cordialidade” do povo brasileiro. Isso significa que o gerenciamento da imigração não diz respeito apenas à concessão de vistos e garantia de condições mínimas de sobrevivência (trabalho e moradia), mas diz respeito também a políticas de inclusão ou incorporação, que abrangem não apenas os imigrantes, mas também a população brasileira. Há poucos dias, eu conversava com um imigrante haitiano que veio fazer uma visita de amigo. Ele comentava sobre racismo. Perguntei-lhe se ele considerava que há racismo no Brasil. Ele me respondeu: “há racismo, mas aqui, pelo menos, a gente não sofre humilhação. Muitas vezes, fui rejeitado no trabalho por ser ‘estrangeiro’ – isto é racismo -, mas sempre me trataram com respeito, sem me humilhar”. O “consolo” do respeito que o imigrante tanto apreciou não justifica o racismo e a discriminação que, muitas vezes, prevalecem no tratamento aparentemente polido ou através de formas discriminatórias incorporadas em nosso modo de agir e aparentemente pouco perceptíveis. A inclusão dos recém-chegados implica uma aproximação recíproca: os migrantes devem aceitar e interiorizar traços culturais do país de chegada, enquanto os autóctones devem abrir espaços de cidadania e de protagonismo para os “novos brasileiros”. É bom enfatizar que a inclusão do “outro” não é algo “natural”, espontâneo ou automático, mas produto de uma opção ética e de um trabalho de abertura, amplas considerações, visão de universalidade e de globalização da solidariedade. Nesse sentido, é fundamental a formulação de políticas públicas voltadas à promoção e à educação para a interculturalidade.
Adital: O que pode ser feito para combater a máfia dos coiotes? Como o Brasil vem combatendo essa modalidade de tráfico humano?
O tráfico de pessoas é, sem dúvida, um dos maiores desafios contemporâneos. É bom enfatizar que há coiotes ou atravessadores tanto no tráfico de pessoas para exploração sexual ou trabalho escravo (trafficking), quanto no “contrabando” de migrantes (smuggling). Estas duas formas de tráfico, embora, por vezes, tenham fronteiras porosas, são bastante diferentes e não devem ser confundidas. No tráfico de pessoas, os atravessadores visam a escravizar, de alguma maneira, suas vítimas e explorá-las. Já no contrabando de migrantes, o atravessador pode ser apenas aquele que oferece a possibilidade de realização de um sonho – a entrada no país de destino -, ainda que a realidade mostre o quanto sejam difundidos os casos de violência contra os migrantes por parte de coiotes inescrupulosos. Conforme organismos internacionais, o tráfico de pessoas tornou-se uma atividade extremamente lucrativa no universo das atividades ilegais. Ainda assim, no caso do contrabando de migrantes, é importante evitar que qualquer ajuda ou solidariedade junto a migrantes em situação irregular, tanto nos países de trânsito quanto naqueles de destino, seja automaticamente classificada como “facilitação da migração irregular” e, portanto, considerada como ação ilegal. Na realidade, na ótica dos direitos humanos, é fundamental combater todas aquelas pessoas ou organizações de pessoas que violam a dignidade dos migrantes. Em outros termos, o foco, antes que na violação da soberania do Estado, deveria estar na violação dos direitos fundamentais da pessoa migrante.
Adital: Qual vem sendo o papel da Igreja Católica e da Cáritas na recepção desses imigrantes no Brasil? Como seria o cenário sem a ação pastoral da Igreja Católica?
Várias instituições, pastorais, centros de atendimento, Cáritas Diocesanas e Arquidiocesanas, Paróquias, Centros de Defesa dos direitos humanos, engajados e atuantes na ação junto às populações em mobilidade. Já é ampla também a participação de congregações religiosas – scalabrinianos e scalabrinianas, jesuítas, palotinos/as, franciscanos/as, salesianos/as, irmãs do Imaculado Coração de Maria, irmãs Ursulinas de São Carlos, entre outras – intensificando a presença da Igreja Católica na acolhida, inserção, defesa de direitos e assessoramento aos migrantes e refugiados; outra dimensão do papel dessas instituições da Igreja é o fortalecimento da ação na incidência sociopolítica local, regional e nacional em favor de políticas públicas que fortaleçam e supram as lacunas e limitações do nosso país em toda a questão migratória, a fim de assegurar um tratamento mais humanizado e digno a esses grupos humanos. A articulação das entidades em rede é também uma estratégia que fortalece tal ação, como, por exemplo, a Rede solidária para Migrantes e Refugiados (RedeMiR), articulada pelo Instituto Migrações e Direitos Humanos. Há que se destacar ainda, nesta missão, o Setor Mobilidade Humana da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que une esforços e age como articulador e dinamizador do conjunto de ações pastorais, que buscam realizar o chamado do Evangelho “Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25,35) e o apelo do Papa Francisco em seu pronunciamento pelo Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, conclamando a que respondamos “à globalização do fenômeno migratório com a globalização da caridade e da cooperação, a fim de se humanizar as condições de vida dos migrantes e dos refugiados”.
Paulo Emanuel Lopes
Acesse no site de origem: Migração no Brasil: inclusão do outro não é algo natural e automático, mas um trabalho de abertura (Adital, 12/12/2014)