Beto Vasconcelos: “A crise migratória impõe desafios ao Brasil”
(Época, 12/09/2015) O secretário nacional de Justiça diz que o país também sofre impactos com a onda de refugiados dos conflitos no Oriente Médio e precisa se preparar para recebê-los
O mais recente relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) revela a mudança no perfil do refugiado no Brasil. De 2010 para cá, o número de solicitações vem aumentando. Hoje existem 8.400 refugiados no Brasil e 12.600 pedidos na fila. Ainda que esses números representem uma parcela reduzida se comparada às estatísticas mundiais, o secretário nacional de Justiça, Beto Vasconcelos, defende medidas para ajudar a contornar a crise migratória que o mundo enfrenta. “Trata-se de um esforço a mais para conscientizar nossa sociedade sobre a assistência humanitária e sobre nosso papel solidário diante de tragédias que afetam uma grande parcela da humanidade”, diz. Vasconcelos quer, em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU), fortalecer o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. O tema tem um apelo pessoal para o secretário, que já visitou missões de refugiados na África. Antes de assumir a secretaria, Vasconcelos trabalhou na chefia de gabinete da Presidência da República e também foi subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil.
ÉPOCA – Qual a avaliação que o governo brasileiro faz da crise migratória que o mundo enfrenta hoje?
Beto Vasconcelos – A questão do refúgio é uma questão de humanidade. Trata-se de reconhecer um dos piores momentos que um ser humano pode enfrentar: a miséria imposta e o isolamento. Em 2014, o mundo bateu recorde de deslocamentos de pessoas que foram obrigadas a sair de casa, muito em decorrência dos conflitos armados, como na Síria. A quantidade de refugiados chegou a quase 20 milhões. Uma realidade dessa também impacta o Brasil. O Brasil tinha, em 2010, 200 solicitações de refúgio e, em 2011, mais de 11 mil solicitações. O número de refugiados no Brasil quase dobrou de 2011 para cá, chegando a 8.400. É um número reduzido ainda, mas esse é um tema que nos chama a atenção e nos impõe um novo desafio – fortalecer o sistema nacional de refúgio, concedido às pessoas que têm fundado temor de perseguição.
ÉPOCA – Como mudou o perfil do refugiado no Brasil?
Vasconcelos – O perfil sofreu alterações ao longo dos anos com o aumento das solicitações feitas por sírios e a diminuição de solicitações realizadas por colombianos. Hoje temos mais refugiados do Oriente Médio e da África, até pelo processo de paz na Colômbia. O relatório do Acnur mostra que de 2013 para 2014 houve um aumento significativo na concessão de refúgio para os sírios, hoje a principal nacionalidade dos refugiados que vivem no Brasil. Em 2013, foram 284 casos, com 100% de elegibilidade. Em 2014, 1.183, também com 100% de aprovação das solicitações feitas. A Resolução Normativa no 17 do Conare facilita a entrada no Brasil de quem queira solicitar refúgio em decorrência do conflito sírio, por meio da emissão de um visto especial com validade de 90 dias. A norma tinha validade de dois anos e se encerra agora em setembro, mas o Conare vai avaliar a prorrogação por igual período. Outros países relevantes entre os solicitantes de refúgio são Senegal, Gana e Nigéria. Em termos de gênero e idade, os dados demonstram que o percentual de mulheres diminuiu e metade dos solicitantes é formada por adultos entre 18 e 30 anos.
ÉPOCA – Qual o impacto dessa mudança?
Vasconcelos – O refúgio é um instituto muito sensível e que deve ser tratado com muito cuidado. O Brasil tem uma das leis mais modernas e atualizadas sobre refúgio. O que tem de mudar não é a lei e nem os compromissos internacionais. O que mudou foi a realidade do mundo e o impacto no Brasil. São pessoas que perderam muito: a vida, a casa, os familiares, os bens, a possibilidade de morar na própria nação. Elas não estão somente em busca de uma oportunidade. Estão em busca de poder viver.
ÉPOCA – Que medidas o governo está adotando para enfrentar o problema?
Vasconcelos – O governo tem estudado medidas para aprimorar sua política migratória e de sensibilização da população para que ela se conscientize sobre o tema e o debata. O novo Estatuto do Estrangeiro será um marco legal que vai prever direitos aos estrangeiros e a não criminalização dos imigrantes, permitindo a migração humanitária e também a laboral, científica, acadêmica. Estamos também criando uma política nacional de documentação, acolhida, abrigamento e assistência jurídica e psíquica para refugiados. Uma parceria com o Acnur também vai fortalecer o Conare.
ÉPOCA – Na prática, o que representa essa parceria?
Vasconcelos – Vamos descentralizar o atendimento aos solicitantes e refugiados com unidades do Conare em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, além da que já funciona em Brasília. Essas unidades vão funcionar e trabalhar para atender aos pedidos de refúgios nos locais onde há grande concentração de solicitantes. Vamos aumentar o número de funcionários públicos para dar mais agilidade e rapidez ao julgamento dos processos. Com mais pessoas trabalhando, vamos diminuir o tempo de apreciação, regularizando a situação desses solicitantes de forma mais rápida. Outra novidade será a contratação de dez consultores especialistas na área de refúgio, que darão apoio à equipe de oficiais de elegibilidade. Também vamos aprimorar nosso sistema tecnológico para permitir entrevistas por videoconferência. Para além de uma questão humanitária, o importante é que a sociedade compreenda que é um compromisso que o Brasil assumiu em acordos internacionais e em sua legislação nacional.
ÉPOCA – Como envolver a população na busca de soluções para essa crise?
Vasconcelos – No início do mês, o Conare lançou dois editais de chamamento público para a criação de um banco de voluntários. As equipes vão auxiliar nos estudos dos aspectos geopolíticos contemporâneos de países de origem dos solicitantes de refúgio, além de contribuir com o Conare na elucidação linguística de documentos e na perfeita comunicação entre entrevistador, solicitante de refúgio e refugiado. O banco de voluntários já conta com mais de 1.000 inscritos. São pesquisadores, estudantes ou refugiados que, entre outras atribuições, falam árabe, creole, lingala, suaíli e uólofe, além de inglês, espanhol e francês. A ONU aponta a existência de 230 milhões de imigrantes no mundo e mostra o crescimento da migração Sul/Sul em percentual maior que a Sul/Norte. O Brasil tem registros ativos de não nacionais de cerca de 1,2 milhão, um pouco mais de 0,5% de sua população, enquanto outros países possuem percentuais que giram em torno de 10% a 20%. O Brasil ainda tem fluxos migratórios reduzidos. Mas, de 2005 para cá, passou a atrair novos imigrantes, com a mudança da estrutura econômica, a inclusão de 40 milhões de pessoas na classe de consumo e a presença do país no exterior.
ÉPOCA – Esse é o perfil dos imigrantes haitianos?
Vasconcelos – Seis anos após o terremoto que afetou 30% da população em um país com baixíssimo IDH, temos o aumento da imigração haitiana para países com que o Haiti tinha alguma cooperação, como os Estados Unidos, o Canadá, a França, a República Dominicana e também o Brasil, que atraiu 60 mil pessoas. O que chama a atenção é o uso de uma rota terrestre, apesar de o Brasil ter criado de maneira solidária o visto humanitário.
ÉPOCA – No início de agosto, foi registrado um suposto ataque a haitianos em São Paulo. Em junho, um frentista haitiano foi humilhado e o vídeo viralizou na internet. Como a secretaria está acompanhando esses casos?
Vasconcelos – A polícia está trabalhando na apuração dos autores. É importante aguardar a identificação e a motivação (a Polícia Civil de São Paulo informou que ainda não concluiu o inquérito). A se confirmar qualquer elemento de ódio ou xenofobia, é muito preocupante. A identidade do Brasil é baseada em imigração, miscigenação e diversidade. Temos uma sociedade com bastante consciência da importância do processo migratório no desenvolvimento do país e para a construção de nossa força de trabalho. Sem esquecer os brasileiros que emigraram para outros países também em busca de oportunidades e uma vida melhor para suas famílias. O processo migratório é natural do ser humano. O que nós temos de enfrentar é a intolerância e a xenofobia, e não a imigração, que faz parte de nossa identidade.
ÉPOCA – O brasileiro está ficando intolerante?
Vasconcelos – Não combina com o brasileiro, sempre tido como solidário, esse tipo de reação xenofóbica. Ainda que haja manifestações de ódio e intolerância por cor, raça, nacionalidade ou razões políticas, espero e acredito que elas partem de uma parte bem minoritária da população. Temos de discuti-las porque isso não faz bem ao país. Para casos assim, temos de usar a lei, que imputa pena a quem discrimina por nacionalidade.
Alana Rizzo
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