(BBC Brasil, 04/09/2015) Paulo Sérgio Pinheiro diz que o “espetáculo de cadávares nas praias da Europa” era um fenômeno previsível, devido à gravidade da crise humanitária na Síria.
O brasileiro lidera a comissão da Organização das Nações Unidas que investiga crimes de guerra na Síria. Segundo ele, a situação no país é “caótica e catastrófica” e que a diplomacia “fracassou” ao não conseguir negociar um fim à guerra civil, que já dura quatro anos.
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O conflito já deixou 240 mil mortos, 7,4 milhões de deslocados internos e cerca de 4 milhões de refugiados – a maioria abrigada nos vizinhos Líbano, Turquia e Jordânia. Cerca de 250 mil pediram refúgio a países europeus.
A questão voltou à tona nesta semana, com milhares de refugiados e imigrantes buscando asilo na Europa. A imagem do menino sírio Alan Kurdi, de três anos, morto numa praia na Turquia após o barco em que estava com a família ter naufragado ao tentar chegar à Grécia, chocou o mundo.
“Não existe novidade de refugiados”, disse ele, em entrevista à BBC Brasil, no dia seguinte à apresentação de relatório da comissão sobre a situação na Síria, em que disse ser “imperativo” uma ação da comunidade internacional.
Segundo ele, 2 mil sírios morreram afogados no Mar Mediterrâneo tentando chegar à Europa. Ele alertou, ainda, para o crescimento de “grupos mafiosos” que traficam pessoas.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por telefone, desde Genebra:
BBC Brasil – O que explica essa nova onda de refugiados que tentam chegar à Europa?
Paulo Sérgio Pinheiro – Primeiro, é o agravamento da situação nos países que generosamente acolheram os refugiados sírios. Basicamente, a Turquia, o Líbano e a Jordânia. Você tem 1,2 milhão de refugiados sírios no Líbano, um país que tem 4 milhões de habitantes. Hoje tem mais crianças sírias na escola primária do que crianças libanesas.
Então, é evidente que a capacidade de esses países acolherem os refugiados sírios está chegando ao limite.
E, evidentemente, diante desse limite, diante do agravamento (da situação na Síria), os sírios tomaram essa decisão angustiante, desesperada, de (solicitar) ajuda de grupos de traficantes mafiosos para chegarem à Europa.
BBC Brasil – Essa não é uma crise nova, mas foi preciso haver imagens fortes, como a do menino sírio morto na praia, para que se discutisse alguma ação.
Pinheiro – Esse é o problema da Europa, porque na verdade essas cenas brutais dos refugiados tentando escapar da guerra já ocorrem desde 2012.
O problema é que os países vizinhos receberam imensamente mais refugiados do que países europeus até hoje se dispuseram a aceitar. Não existe novidade de refugiados. A crise está aberta desde que a guerra começou.
O único aspecto novo da crise é que os refugiados sírios resolveram, por causa de seu desespero, assumir essa empreitada de enfrentar o mar e ir para a Europa.
BBC Brasil – O senhor disse ser ‘imperativo’ o mundo ajudar a receber refugiados. Como poderia ser essa ajuda?
Pinheiro – A Europa sabe certamente o que tem que fazer. O secretário-geral (da ONU, Ban Ki-moon) já indicou várias possibilidades: a recolocação em outros países, admissão humanitária, políticas de visto flexíveis, reunificação de famílias.
O caso desse menininho (Alan Kurdi) que morreu está ligado a um caso de reunificação familiar no Canadá que foi negado (na última quinta-feira, o governo canadense havia negado ter recebido um pedido de asilo por parte do pai de Alan). E também esquemas especiais de proteção.
Isso já foi feito com os refugiados na Guerra do Vietnã nos anos 1970 e 1980. É só um exercício de memória para saber o que deve ser feito.
Agora, evidentemente, os números ridículos (de recebimento refugiados) que estavam sendo oferecidos não poderiam concretizar o que o secretário-geral da ONU tem apelado às nações europeias.
BBC Brasil – A estimativa da Alemanha é de receber 800 mil refugiados e imigrantes só neste ano. O que fazer com eles?
Pinheiro – Isso é problema dos países europeus. Eu não comento políticas de Estados específicos. (Mas) as democracias sabem muito bem o que têm que fazer.
Agora, evidentemente que, por serem democracias, não podem usar critérios do tipo ‘nós não queremos árabes, nós não queremos muçulmanos’. Isso é uma coisa absolutamente escandalosa no século 21.
Isso é um problema que as democracias e sociedades vão ter que resolver.
BBC Brasil – E o Brasil?
Pinheiro – O Brasil, já faz algum tempo, abriu para os sírios o visto humanitário, que foi uma coisa positiva. Essa é uma decisão importante.
BBC Brasil – A ONU vai tentar fazer que mais países recebam refugiados?
Pinheiro – O nosso discurso está diretamente imbricado nos últimos apelos que o secretário-geral e o alto-comissário para refugiados (António) Guterres vêm fazendo há muito tempo. Muito antes de começar a haver esse espetáculo de cadáveres chegando às praias europeias.
O alto-comissário já tinha alertado, acho que já há mais de um ano, para esse problema que ia estourar na Europa.
BBC Brasil – Como o senhor classifica a situação dentro da Síria?
Pinheiro – A situação, na perspectiva das vítimas, é absolutamente caótica e catastrófica. Não existe mais nenhum lugar na Síria onde a população civil está protegida.
Nem o governo nem os grupos rebeldes têm nenhum respeito ao princípio de distinção, que é uma coisa básica da lei da guerra, que os combatentes não podem ficar se misturando à população civil, e é exatamente isso que está acontecendo.
Une-se o bombardeio indiscriminado, tanto por parte do governo, que tem aviação aérea, como por parte também dos grupos rebeldes, com a utilização de espaços da população civil como base militar.
Sem falar do bombardeio sistemático por parte do governo em escolas e hospitais.
BBC Brasil – O senhor vê alguma possibilidade para o fim da guerra próximo?
Pinheiro – Nós estamos condenados a uma solução diplomática. Não existe solução militar. O problema é que os Estados-membros precisam superar a sua ambiguidade.
Não dá, ao mesmo tempo, para você dizer que você é a favor de uma solução diplomática, negociada, e por outro lado você continua apoiando os dois lados, enviando armas, recursos financeiros. É muito difícil terminar uma guerra dessa maneira. A guerra só termina com negociação.
BBC Brasil – E como é a vida de sírios que vivem em áreas controladas pelo ‘Estado Islâmico’?
Pinheiro – Primeiro, a vida para as minorias cristãs dos yazidi é um desastre total. Eles são considerados infiéis, as mulheres estão sendo traficadas, submetidas a violações e abusos sexuais.
E alguns cristãos pagam (ao EI) ou então se convertem ou saem. A situação é terrível.
Na população que tem que se submeter, que não é nem cristã nem de nenhuma minoria, as mulheres perderam totalmente o espaço na vida pública. São totalmente submetidas aos maridos e aos homens. As crianças são totalmente doutrinadas, inclusive utilizadas em funções da luta armada.
Mesmo os serviços que em certo momento estavam sendo assegurados em algumas cidades encontram alguma crise.
É devastador em termos das condições de sobrevivência das populações.
BBC Brasil – Esse refugiados que agora saem da Síria são de áreas controladas pelo ‘Estado Islâmico’?
Pinheiro – Não necessariamente. Nos anos anteriores era mais fácil saber de onde os refugiados estavam vindo. E é uma coisa bastante difícil (sair destas áreas).
BBC Brasil – O mundo fracassou na Síria?
Pinheiro – O mundo não, mas a diplomacia mundial fracassou.
Até hoje se perderam muitas oportunidades e o problema pior é que, inicialmente, era um combate entre oposição e governo, depois se ampliou para o envolvimento de potências regionais. E hoje, é uma guerra civil… profundamente internacionalizada.
BBC Brasil – O que se fazer para aliviar o problema de refugiados?
Pinheiro – Primeiro, o que precisa se fazer é terminar a guerra. Não há nenhuma solução mágica para acabar com esse problema dos refugiados, que querem escapar.
O que a Europa pode fazer é reprimir os circuitos mafiosos de traficantes que estão pintando e bordando, aproveitando o desespero de sírios e nacionais de outros Estados para chegar à Europa.
Hugo Bachega
Acesse no site de origem: ‘Espetáculo de cadáveres em praias europeias’ era previsto, diz brasileiro da ONU (BBC Brasil, 04/05/2015)