‘A possibilidade de acolhida é o grande ativo do Brasil’, diz presidente do Conare sobre refugiados

(Brasil Post, 27/09/2015) País latino-americano que mais recebe refugiados sírios, o Brasil vai continuar facilitando a entrada de cidadãos afetados pela guerra civil que assola a Síria desde 2011, e que já matou mais de 250 mil pessoas.

Na última semana, os conselheiros do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) decidiram, por unanimidade, prorrogar por mais dois anos a Resolução Normativa nº 17, que facilita a emissão de vistos para quem vive na Síria. O último levantamento indica que já foram concedidos 7.752 vistos – a maioria nas embaixadas do Brasil no Líbano, Jordânia e Turquia.

Beto Vasconcelos, presidente do Conare e secretário Nacional de Justiça (Foto: Agência Brasil)
Beto Vasconcelos, presidente do Conare e secretário Nacional de Justiça (Foto: Agência Brasil)

De acordo com o presidente do Conare e secretário Nacional de Justiça, Beto Vasconcelos, ao facilitar a emissão de vistos, são excluídos alguns requisitos aplicados no regime geral de emissão. “Nós não exigimos passagem de volta, demonstração de residência no país de origem e comprovação de depósito bancário, ou seja, renda pré-existente do solicitante”, explica Vasconcelos em entrevista ao Brasil Post.

De 2010 até 2014, o País registrou uma alta de 2.131% no número de solicitações de refúgio. Atualmente, o Brasil tem quase 3.000 refugiados sírios reconhecidos, além dos processos que aguardam decisão. Neste ano, de acordo com o Conare, foram recebidas 890 solicitações de refúgio apenas de cidadãos sírios.

Além da prorrogação da Resolução, o Conare emitiu uma autorização para o Ministério das Relações exteriores firmar parcerias com organismos internacionais, em especial com a Acnur, agência da ONU para refugiados.

Confira a seguir a íntegra da entrevista em que Vasconcelos fala sobre a recepção do Brasil aos refugiados, as próximas medidas que o Estado deve tomar para receber esses fluxos e a recepção do povo brasileiro a quem vem da Síria.

Brasil Post: A prorrogação da Resolução Normativa nº 17 é um passo para trazer mais sírios para o Brasil?

Beto Vasconcelos: Exatamente. É também um passo para facilitar e garantir mais segurança para todo o processo de emissão de vistos especiais e para robustecer a nossa política humanitária.

Como vai funcionar a parceria entre o Conare e a Acnur?

A parceria vai se dar, principalmente auxiliando a execução dessa política de emissão de vistos especiais nas unidades consulares de países vizinhos ao conflito sírio. Nossas unidades consulares têm feito um esforço importante na emissão desses vistos, mas certamente podemos aprimorar a celeridade, a identificação e a facilitação para emitir esses documentos. Além de auxiliar na identificação de casos urgentes, a Acnur, com sua expertise, vai ajudar na facilitação e na obtenção de vistos. Por exemplo, quando há dificuldade na obtenção de documentos e comprovações da ausência de um familiar que está no campo de batalha ou que faleceu.

De que forma o Conare prevê que a prorrogação da regra vai afetar a vinda de sírios para o País?

Depois da emissão dessa resolução, em setembro de 2013, o Brasil acabou por reconhecer 2.097 sírios. Antes eram muito poucos os sírios reconhecidos como refugiados. Com a prorrogação da Resolução, nossa expectativa é manter a política atual e ampliar nossa capacidade de emissão de vistos e, consequentemente, nossa capacidade de recepção e concessão de refúgio à nacionais sírios ou pessoas afetadas pelo conflito. A gente ainda não sabe em qual medida esse aumento vai se dar. Queremos manter a política como está, e ampliá-la na medida em que parcerias se consolidem.

Quais novas parcerias devem ser firmadas?

Há algumas organizações que ainda não foram contatadas mas que pretendemos procurar para prestar auxílio, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Quais são as maiores dificuldades do Brasil em relação aos refugiados?

Eu acredito que nós já avançamos em várias medidas, estamos executando novas, mas há ainda outros desafios. Nosso desafio é ampliar a rede de acolhimento e assistência aos refugiados no País, tanto em parceria com estados e municípios como em novas parcerias com a sociedade civil. Hoje [dia 23 de setembro] nós temos uma reunião com Estados onde há o maior número de solicitantes e refugiados no Brasil, na região sul e sudeste, para uma primeira conversa sobre a ampliação da rede de acolhimento e assistência. Nosso outro desafio é consolidar e formalizar uma política nacional para refugiados que envolva Estados, municípios e sociedade civil.

Outra meta importante para esse semestre é a aprovação de uma nova lei de imigrações no País. O Brasil tem uma das mais modernas leis de refúgio e uma das mais arcaicas e herméticas leis de imigração.

E em quais pontos o Brasil já avançou?

Já há algumas parcerias estabelecidas com entes federativos, como é o exemplo da implementação do Centro de Referência e Atenção ao Imigrante e ao Refugiado na cidade de São Paulo, uma parceria entre o governo federal e a cidade. O centro, além de acolhimento e abrigamento, proporciona assistência social, jurídica e psicológica.

Além disso, há as parcerias com entidades da sociedade civil, como o Cáritas, no Rio e em São Paulo, e o IMDH de Brasília. Com essas três nos temos parcerias e convênios assinados que preveem, além de assistência jurídica, psicológica e social, auxílio financeiro por um período temporário para ajuda a esses solicitantes e refugiados no Brasil. Há também outras parcerias como a com a Adus, que faz um trabalho exemplar e baseado em voluntariado. Essas novas medidas implementadas foram muito importantes no momento em que a realidade sobre refúgio no Brasil mudou.

Qual foi a mudança do perfil do refugiado no Brasil nos últimos anos?

Em primeiro lugar é importante destacar o cenário mundial: há tempos a ONU alerta o mundo sobre o triste recorde que batemos em relação às pessoas deslocadas de maneira forçada. Os números são assustadores: são 60 milhões de pessoas deslocadas das suas casas, das quais 20 milhões saíram dos seus países. Desses 20 milhões, há um número assustadoramente crescente de nacionais sírios, que já ultrapassam 4 milhões de refugiados e 8 milhões de deslocados internos.

É claro que esse cenário afeta todos os muitos países do mundo, e não foi diferente por aqui, ainda mais tendo o nosso país tomado a iniciativa de abrir a possibilidade humanitária pelo visto especial desde 2013. Esse cenário internacional obviamente impactou o Brasil no aumento significativo nos últimos anos das solicitações e das concessões de refúgio.

O perfil se alterou nesses últimos anos para a maior concessão de refúgios para nacionais sírios, que hoje já são a maior população de refugiados no brasil. Antes, a maior população era a de angolanos, ainda como um resquício da época da guerra civil angolana. Atualmente observa-se também um crescente numero de solicitações e concessões de refúgio para congoleses, que já são a quarta população de refugiados no Brasil.

O que se percebe é uma estagnação do número de refugiados angolanos e colombianos, que antes eram as maiores populações e um crescimento de refugiados da Síria e da República Democrática do Congo.

Conversando com alguns voluntários que trabalham com refugiados, a gente percebe uma dificuldade muito grande em relação à sensibilização de servidores. Os refugiados relatam, por exemplo, dificuldades em abrir conta bancária ou em emitir outros documentos. O que o Conare pretende fazer sobre isso?

Precisamos, sem duvidas, de campanhas de sensibilização sobre o tema de refugio. Nós já iniciamos e está em circulação nas redes sociais uma campanha geral de sensibilização sobre os compromissos que o Brasil assumiu com relação a refúgio. A campanha também tem o intuito de esclarecer quem são essas pessoas, porque elas estão saindo de lá, e esclarecer o drama vivido por pais e famílias inteiras tentando salvar suas vidas, além de reduzir e confrontar manifestações – ainda que pontuais – de xenofobia, preconceito e ódio.

Nós pretendemos, a partir de outubro, iniciar uma campanha junto a entes públicos e privados para esclarecer quais são as normas do País com relação aos direitos dos solicitantes de refugio e refugiados em território nacional.

O senhor mencionou agora a questão de incidentes contra refugiados. Há registros de ataques contra haitianos, racismo, xenofobia. Como o Conare vê essa questão?

Qualquer manifestação de xenofobia, preconceito, ódio ou racismo, nos preocupa enormemente. Por isso a importância das campanhas de esclarecimento e sensibilizacão e, obviamente, quando verificadas as agressões, a devida apuração legal por parte das autoridades policiais e judiciárias. Esse tipo de atitude não combina com o Brasil, não combina com o povo brasileiro. O Brasil, se consciente de que é construído em fluxos migratórios distintos, certamente vai receber, de maneira humanitária e solidária, esses refugiados que passam por um momento tão delicado e tão sensível da vida deles.

O brasileiro tem sido receptivo aos refugiados?

Eu vejo a possibilidade de acolhida como um dos nossos grandes ativos. A identidade da sociedade brasileira é uma identidade de diferentes povos, culturas, de miscigenação e de solidariedade. Essa é a nossa história. Fomos construídos por fluxos migratórios em diversos momentos e por diversas razoes: tanto econômicas quanto humanitárias. Quantos europeus vieram para cá na Primeira e na Segunda Guerra Mundial?

Tantos nacionalidades de outros países e outras regiões do mundo vieram ao longo da história para o Brasil ajudaram a construir a sociedade brasileira, com empreendedorismo, com geração de novas oportunidades de trabalho e com uma construção de culturas diferentes aqui no País.

Um fato marcante, infelizmente, foi a imagem do menino Aylan. Aquele pode e deve ter sido um marco importante na mudança da postura de vários países com relação ao tema, mas também na sensibilização das pessoas, que passaram a compreender o drama humanitário que nós estamos vivendo.

Aquela cena foi a expressão mais dramática e triste de uma realidade cruel para a qual a ONU já vem alertando há muito tempo, e traz evidências, para todos nós, que o momento de maior desespero que um ser humano pode ter que é a tentativa de salvar a sua família. Afinal, nenhum pai, nenhuma mãe, coloca seus filhos num barco, para atravessar o mar, diante de um evidente e conhecido risco de morte, se a terra firme for mais segura. Esclarecer isso, infelizmente chegando ao ponto de mostrar fotos tão chocantes, tem o condão de esclarecer e sensibilizar sociedades no mundo e a sociedade brasileira também.

Gabriela Bazzo

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