Cultura como ponte: sarau aproxima refugiados e brasileiros por meio da arte
Longe de estereótipos comuns quando se fala do tema, projeto desenvolvido pelo Sesc São Paulo traz protagonismo de refugiados na música, poesia e dança
Por Géssica Brandino
Abdulbaset Jarour conversa com a plateia exibindo um sorriso largo. Ele chegou ao palco amparado por muletas, após uma cirurgia na perna. Nascido em Aleppo, na Síria, Abdulbaset apresenta sua terra com orgulho “a cidade mais antiga do mundo”, para logo cantar em árabe uma música sobre a saudade de casa. O jovem sírio entoa a letra sem desfazer o sorriso, tornando a melodia mais doce e alegre. É uma noite especial: há exatos três anos, no dia 8 de fevereiro de 2014, Abdulbaset chegou ao Brasil. “Senti como se tivesse nascido de novo. Hoje, sinto o Brasil como minha pátria”.
Compartilhar a própria cultura permite àqueles que se refugiaram no país uma aproximação dos brasileiros livre de estereótipos comuns quando se aborda tal questão. Eles vieram da República Democrática do Congo, Colômbia, Palestina, Haiti e da Síria e não querem ser reduzidos a vítimas. O sentimento que trazem é de troca, de descoberta de outras culturas, idiomas e formas de comunicação. Naquela noite, eles são os protagonistas de uma experiência intercultural que tem se espalhado pelo estado de São Paulo por meio do projeto Sarau dos Refugiados.
A iniciativa promovida pelo Sesc São Paulo começou na unidade Pompeia, na capital, em maio de 2016. De lá pra cá, o projeto já esteve em Campo Limpo, na zona sul, São José dos Campos, Santos, Registro, Osasco e Sorocaba. Na semana passada, abrindo o calendário de 2017, foi a vez do evento levar música, literatura e dança à noite da unidade do Belenzinho, na zona leste da capital. Há mais de vinte anos, por meio da parceria com a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e de convênio com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Sesc oferece cursos de português para solicitantes de refúgio que chegam à capital paulista. À frente dos projetos desenvolvidos para refugiados nas unidades do serviço, a gerente de estudos e programas sociais Denise Collus vê no sarau uma forma de abordagem diferenciada e quem tem sido recebida com entusiasmo pelo público. “Foi uma forma muito interessante de introduzir a temática do refúgio, porque eles se apresentam, contam de onde vieram e as pessoas começam a ser situadas na temática de uma forma muito mais leve do que se o tema estivesse numa mesa de discussão”, conta.
O sarau é conduzido pela mestre de cerimônia Débora Garcia. Brasileira e mulher negra, a poeta fala com entusiasmo da iniciativa e do aprendizado contínuo por meio do projeto. A realidade do refúgio aos poucos é apresentada com dados e reflexões sobre a importância do respeito. Com trajetórias diversas, cada refugiado leva ao palco um pouco da própria história em forma de arte.
Das músicas africanas cantadas a capella pelo grupo “Os Escolhidos”, formado pelos congoleses Hidras Tuala, Mabiala Nkombo e Muanda Tryson, às poesias escolhidas por refugiados da América Latina e Oriente Médio, o público participa de uma viagem cultural. Vinda da Colômbia, Juanita Solano declamou em espanhol a letra da música “No me llames extranjero”, de Alberto Cortez e Facundo Cabral, uma reflexão sobre a humanidade que une pessoas de todas as nacionalidades, além de um poema do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro. Da Palestina, Amjad Melhem recitou poemas em árabe, com o apoio de Débora na tradução. Os versos falavam sobre perseverança, sobre não abaixar a cabeça e não desistir. Já Marc Pierre, do Haiti, declamou em crioulo uma reflexão sobre o socialismo, com críticas À exploração do sistema capitalista.
Além dos artistas refugiados, a edição do sarau contou com a participação do ator e cantor Bukassa Kabengele, nascido na Bélgica e criado até os 10 anos no Congo. Filho de Kabengele Munanga, primeiro antropólogo congolês, eles migraram para o Brasil nos anos 80 por questões políticas. Para o artista, é preciso que se entenda o ser humano como universal e que não existe um favor ao receber migrantes e refugiados, mas uma troca honesta. “O que estamos tendo aqui nos mostra que o mundo é muito maior, que há guerras e abismos e tantos ismos que nos separam, mas o fato é que quando abrimos o coração entendemos que nenhum desses desentendimentos faz sentido, pois viemos do mesmo berço. Se pararmos e olhar para o nosso coração, com o olhar do respeito e do que é universal, vamos entender que somos todos irmãos”. E é nesse espírito que o artista convida “Os Escolhidos” para cantar a música “Mina Penda”, encantando a plateia.
A apresentação do sarau no Belenzinho fez parte da mostra “Motumbá: memórias e existências negras”, que tem como intuito valorizar a representatividade de matrizes africanas, por meio da integração de diversas linguagens artísticas e ações culturais produzidas e interpretadas por grupos e artistas negras, negros e periféricos. Segue até março com programação variada, oficinas, debates, apresentações de teatro, performance, dança, shows musicais e outras atividades.
As próximas apresentações do Sarau dos Refugiados estão previstas para março. No dia 24, os artistas se apresentam no Sesc da Vila Mariana, como parte da semana da francofonia, e no dia 26, em Ribeirão Preto.
*Correção: Abdulbaset nasceu em Aleppo e não em Holms, conforme escrito na primeira versão do texto. A informação foi corrigida às 14h35 do dia 18/02/107