Após vinte anos da Lei de Refúgio brasileira, mais de 27 mil pessoas aguardam parecer do governo
Garantir a celeridade e transparência na análise dos pedidos de refúgio no Brasil é um dos desafios no aniversário de vinte anos da Lei nº 9474
Por Géssica Brandino
Um pedaço de papel sulfite com uma foto em preto e branco, carimbo e o número provisório do Registro Nacional de Estrangeiro. Este é o único documento que a antropóloga e historiadora cubana Maria Ileana Faguaga Iglesias, 53, tem para comprovar o status regular no Brasil, enquanto aguarda o parecer do governo sobre a solicitação de refúgio.
O Brasil tem hoje 9.552 refugiados reconhecidos de 82 nacionalidades e 27.343 pessoas esperam a decisão do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), que analisa os pedidos com base na Lei nº 9474, Lei Brasileira de Refúgio, que completou vinte anos sábado (22/7).
Vítima de perseguição política em Cuba, Maria chegou a São Paulo em outubro de 2013. Com o pedido de renovação de visto negado, soube na Cáritas-SP, braço humanitário da igreja Católica, que poderia pedir refúgio. Na época, o agendamento para a entrevista com a Polícia Federal demorava meses e Maria só pode protocolar o pedido em abril de 2014.
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Meses depois, ela foi entrevistada por uma advogada do Conare. Em outubro do ano passado, Maria refez o procedimento e continua à espera do parecer. “Nunca tive resposta da primeira vez e agora também não”, diz. Ela se queixa que o Conare nunca dá informações sobre o andamento do processo.
Para o pesquisador Alex Vargem, “não há transparência do Conare em relação aos deferimentos e indeferimentos”. Ele analisa que esse é um mecanismo da lei que não foi aprimorado ao longo dos anos. “Muito se alega que não pode expor o solicitante, mas a própria pessoa não sabe sobre o seu pedido e é preciso deixar as coisas mais claras. A sociedade civil precisa cobrar isso”, defende.
A advogada Gabriela Cunha Ferraz aponta a falta de informação como violação de direitos. “Os autos não são disponibilizados para o solicitante de refúgio, que não sabe quanto tempo o processo vai demorar. Isso afeta todas as áreas da vida de uma pessoa e cria uma instabilidade muito grande para alguém já chega em situação de vulnerabilidade acentuada. Ao invés de oferecer a proteção internacional do refúgio, o governo acaba agravando o processo de instabilidade ao não cumprir suas obrigações internacionais”, frisa.
Se o parecer for favorável, reconhecida a situação de fundado temor de perseguição ou de grave violação de direitos humanos, o refugiado recebe o documento definitivo, o Registro Nacional de Estrangeiros. Sem ele, Maria enfrenta dificuldades por ter apenas o protocolo de permanência provisória e não consegue, por exemplo, trocar uma senha no banco, ter um cartão de crédito e exercer a própria profissão.
“Faço bicos como professora de espanhol, mas se paga muito pouco, mal dá para o aluguel. Você fica a mercê de pessoas exploradoras, fiz vários trabalhos e não recebi. Há pessoas que se acham no direito de destratar você por não ter documento. Você está à espera e sua vida fica realmente um lixo”.
Segundo o Ministério da Justiça, o tempo médio para resposta do Conare é de dois anos e meio. Para Gabriela, a demora está diretamente relacionada à falta de estrutura técnica e orçamentária do Conare para lidar com o aumento de pedidos de refúgio no país. “O refúgio é um processo individual, isso demanda tecnicidade e tempo”.
O Ministério da Justiça informa que o Conare dispõe de escritórios em São Paulo, Porto Alegre e Brasília e realiza reuniões com intervalo não superior a 60 dias. Atualmente, há cinco profissionais atuando na realização de entrevistas de elegibilidade e os casos são analisados pelos representantes dos ministérios e sociedade civil que integram o Comitê.
Sírios
Há casos em que a análise é mais rápida, como dos sírios, por conta de uma resolução adotada pelo comitê devido à guerra no país. Nascido em Aleppo, Abdulbaset Jarour, 27, chegou a São Paulo em fevereiro de 2014, com um visto de turismo concedido por razões humanitárias.
Ele lembra foi muito difícil solicitar refúgio naquela época. “A entrevista para receber o protocolo na época demorava de seis meses a um ano e a situação era complicada”, conta. Depois de cinco meses, conseguiu protocolar o pedido e um ano depois recebeu o parecer positivo e pode emitir o RNE.
Gabriela explica que a celeridade em relação ao caso dos sírios é um exemplo positivo. Para os casos de outras nacionalidades, ela ressalta que o Conare nunca teve um critério cronológico e que, dependendo da complexidade do caso, a analise pode demorar mais tempo. Além disso, fatores políticos também podem pesar na análise. Autora do projeto Vidas Refugiadas, Gabriela conhece a história de Maria, uma das participantes da iniciativa.
“É uma situação complicada porque o Brasil tinha uma relação próxima ao governo de Cuba e não queria reconhecer a opressão com militantes políticos. Com isso, casos assim eram colocados no fim da fila, o que obviamente não é avisado para o solicitante”.
Nova Lei de Migração
Com a vigência o Estatuto do Estrangeiro, que impõe uma série de dificuldades para os migrantes que buscam regularizar a situação migratória no país, muitos recorrem à Lei do Refúgio para conseguir documentação básica para permanecer no Brasil, ainda que não tenham o fundado temor de perseguição.
Para Alex Vargem, a expectativa é que com a entrada em vigor na Nova Lei de Migração, a partir do final de novembro, essa situação mude, garantindo o devido processo legal para quem chega ao país e oferecendo novas possibilidades de regularização.
Um exemplo, segundo ele, é o caso dos venezuelanos que chegam pelo Norte do país e cujas as solicitações de refúgio já passam de 12 mil. Para aqueles que tiveram o pedido de refúgio negado, uma possibilidade de regularização é recorrer à resolução sobre residentes fronteiriços, porém é preciso arcar com as taxas, que chegam a mais de 300 reais por migrante. Para quem não tem o valor, a solução é recorrer à Justiça, por meio da Defensoria Pública da União. No início de julho, uma migrante angolana foi beneficiada com a isenção da taxa após recorrer à DPU.
O que diz o Conare
Em nota, encaminhada à reportagem em 25/7, o Conare esclarece que o tempo médio de análise dos processo depende de vários fatores, tais como: localização, idioma do solicitante, atualização cadastral, comunicações de viagens, insuficiência de dados fornecidos na solicitação, dentre outros que venham a ocorrer durante do trâmite do processo.
Quanto à transparência, esclarece que deverá ser resguardado o sigilo das informações, conforme previsto nos artigos 20 e 25 da Lei nº 9474/97, razão pela qual não há ampla divulgação a respeito dos processos de refúgio.
Quanto ao oferecimento de informações processuais, o Conare possui um endereço eletrônico disponível para este tipo de demandas: conare@mj.gov.br , mediante apresentação da cópia do respectivo protocolo de solicitação de refúgio a fim de resguardar a confidencialidade dos dados do solicitante.
Os critérios para deferimento e/ou indeferimento do reconhecimento da condição de refugiados estão previstos na Lei nº 9.474/97, no Estatuto dos refugiados de 1.951, na Declaração de Cartagena de 1984, assim como nas diversas diretrizes de proteção internacional publicadas pelo Acnur. De fato o legislador delegou ao plenário do Conare a competência para decidir os pedidos em primeira instância, e ao Ministro da Justiça para decidir os recursos. Os processos são devidamente instruídos com relatório técnico elaborado pela Coordenação Geral de Assuntos de Refugiados, o qual serve de subsídio para decisão do Comitê.
Questionado sobre previsão de aumento da estrutura pessoal e orçamentária, o Conare informa que conta com três servidores em formação para atuar na realização de entrevistas, bem como têm sido empenhados esforços no sentido de recrutar novos servidores para o exercício de tais funções.
*Reportagem atualizada em 25/07/2017, às 16h35, com inclusão de informações repassadas pelo Conare, via assessoria de imprensa do Ministério da Justiça