9ª Mostra Mundo Árabe de Cinema: encontro reflete sobre refugiados, imigração e política contemporânea no CCBB-SP
(Icarabe,
A 9ª Mostra Mundo Árabe de Cinema realizou no último sábado, 13, no CCBB-SP, o penúltimo debate da edição 2014, com o tema “O campo como condição: o lugar dos refugiados na política contemporânea”. O encontro dialogou com os filmes “Shebabs de Yarmouk” e “Um mundo que não é nosso”, que retratam a vida de refugiados na Síria e no Líbano, além de abordar a questão migratória e a importância do cinema neste cenário. O evento foi promovido em parceria com a Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) na Universidade Federal de São Paulo.Participaram da mesa Geraldo Adriano Godoy de Campos, diretor e curador da Mostra, João Amorim, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Unifesp, que integra projeto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e incentiva a pesquisa e a produção acadêmica relacionada ao Direito Internacional dos Refugiados e Senat Diderot, haitiano, refugiado no Brasil há dois anos e meio.
Geraldo Godoy de Campos abriu a discussão falando da importância de abrir espaços para reflexões geradas a partir das narrativas cinematográficas, um dos objetivos da Mostra, como a questão dos refugiados mostrada nas duas produções exibidas naquela tarde. “Pensar a situação dos refugiados significa pensar fundamentalmente um tema que é essencial da política contemporânea: a questão do território”, afirmou.
“O tema do território hoje não se restringe às pessoas que estão em situação de refugiados, mas também às pessoas que lutam pela resistência dos territórios. É uma questão que está colocada no mundo inteiro”. Não é por acaso, disse, que grande parte dos movimentos sociais, dentro de um novo ciclo global, dos últimos anos passa fundamentalmente por uma questão da ocupação dos espaços públicos. “O estabelecimento desta questão não somente como prática política, mas também como uma narrativa política entra neste século 21 com muita força.”
João Amorim ressaltou que a carga simbólica dos refugiados não está somente ligada a questões ideológicas, religiosas e de geopolítica. Hoje, pontuou, vivemos inseridos em um sistema falido. “É um sistema que já deu todas as provas possíveis de seu fracasso. É uma herança que a modernidade nos legou. Insistimos em querer solucionar os problemas contemporâneos com formulas do século 19 na esperança de que esse pensamento em caixinhas vai um dia funcionar”, criticou.
De acordo com Amorim, devemos olhar de forma mais profunda e humana para o outro. Em sua opinião, não aprendemos a refletir sobre a situação, seja do refugiado da Palestina ou do nordestino, do deficiente, do homossexual. “Não fazemos esta empatia. Nosso sistema não nos educa, não torna essa empatia algo natural, pelo contrário, somos direcionados culturalmente ao estranhamento”.
A preocupação tanto do ACNUR e das organizações que trabalham com refugiados quanto da Cátedra Sergio Vieira de Mello, segundo Amorim, foi utilizar mecanismos para tentar facilitar essa transformação da pessoa naquele espaço. “Um espaço que é amorfo, hermético, desconectado de legislação, de temporalidade, não apenas pelo viés do trabalho, mas pelo ponto de vista da retomada. O deslocamento gera um desenraizamento da pessoa, seja porque ela foi forçada violentamente a sair do local, seja porque as condições socioeconômicas daquele lugar não permitiram que a tradição, sua relação afetiva, cultural e histórica com aquele lugar prosperasse.”
Amorim também destacou a importância da reflexão sobre a Questão Palestina, além do papel político do refugiado e do imigrante. A política externa, disse, de modo geral não é colocada no debate político. “Estamos no meio de uma campanha eleitoral, em um estado que recebe a maior parte dos migrantes e refugiados do país, e não vemos a discussão sobre uma política migratória, na projeção dos planos políticos ou uma proposta de emenda constitucional que vise recuperar um pouco da dignidade política dos estrangeiros, dos refugiados permanentes no Brasil.”
O terceiro componente da mesa, Senat Diderot, 28, está há dois anos e meio no Brasil como refugiado permanente. Veio em busca de um futuro melhor. No Haiti, deixou a mãe, de quem mais sente falta, e outros quatros irmãos. O sonho de Diderot é cursar uma faculdade, de preferência na Universidade de São Paulo. Quer fazer arquitetura. “Vim para estudar, aproveitar a língua, a cultura. O Brasil é um dos países mais conhecidos no Haiti e as pessoas têm uma hospitalidade incrível. Quero fazer faculdade para ter um futuro melhor”, contou.
Diderot terminou a escola normal no Haiti e espera a documentação para ingressar na Universidade aqui no Brasil, pois já foi aprovado no curso de arquitetura. Sobre as dificuldades vivenciadas ao chegar ao país não gosta nem de lembrar, mas acredita que o pior já passou. Ele ficou em Manaus durante oito meses sem trabalho, sem ajuda. Trabalhou outros três meses em Curitiba e depois veio para São Paulo, onde conseguiu emprego como recepcionista bilíngue no CCBB. “Cheguei sozinho, sem família. É muito difícil deixar sua terra para viver em outro país, mas sei que vou conseguir”, disse. “Alguns momentos foram tão difíceis, tão duros, que às vezes não quero nem falar para não lembrar como foi”, revelou.
Apesar das dificuldades enfrentadas na chegada, segundo Diderot, é mais difícil ainda ver a família passando necessidade, fome e não ter como ajudar. Por isso, afirmou, muitos haitianos vêm para o Brasil em busca de oportunidades e de oferecer uma vida mais digna aos filhos, à família.
Geraldo dicorreu sobre a situação de vulnerabilidade a que estão expostos imigrantes e refugiados, principalmente as mulheres. “O deslocamento, desde o plano afetivo da relação familiar à questão jurídica da segurança de estar em um lugar com todos os direitos, concretamente, expõe as pessoas a situações de vulnerabilidade social”. São Paulo, apontou Geraldo, é uma cidade conhecida hoje pela exploração da mão de obra imigrante. O maior exemplo é o que acontece na indústria têxtil, envolvendo a força de trabalho dos bolivianos. Neste caso, disse, temos que ter consciência e maior atenção à questão de gênero. “Se é difícil estar na situação de imigração, de refúgio, é mais difícil ainda por ser mulher, pois estão mais expostas à violência. Um exemplo é o espaço das oficinas de costuras, onde a divisão sexual do trabalho impõe às mulheres o cuidado dos filhos, a preparação da comida… Não se dá muita atenção a esta situação”, alertou.
A força da narrativa
Para Geraldo, o cinema é uma das fontes mais poderosas para geração de reflexão. As imagens e a narrativa da cinematografia, acredita ele, revelam uma força fundamental para sociedade: “o testemunho, que é muito importante para não deixar que as coisas caiam no esquecimento. Há uma dimensão que o testemunho consegue absorver, falar algo que parece indizível”. Isso é muito forte no cinema palestino contemporâneo, acrescentou Geraldo.
Ele lançou questionamentos, como “o que nós como humanidade somos capazes de fazer depois desses relatos que a cinematografia nos traz hoje?” E trouxe a questão para a realidade das periferias de São Paulo. “Devemos observar a proliferação de saraus nas periferias de São Paulo, por exemplo. Deste resgate da poesia como forma de narrar o dia a dia das pessoas. A força da narrativa, do testemunho de alguém que está vivendo situações de resistência, de luta cotidiana. A poesia e o cinema são armas poderosas”, refletiu.
O futuro da Questão Palestina
Outro ponto forte do debate foi em relação ao futuro da questão palestina, que para João Amorim, está diretamente atrelada à forma como a sociedade civil vai se organizar em relação a isso. “Está claro que em 70 anos os mecanismos políticos tradicionais só reforçaram o genocídio e expropriação daquele povo”, ressaltou ele.
Do seu ponto de vista, o modelo sistêmico internacional já durou tempo demais. É um sistema que produz 2, 2 bilhões de pessoas sem saneamento, 53 milhões de refugiados no mundo e um bilhão de pessoas com fome no planeta. “É um sistema fracassado e que depende de nós”. As decisões são tomadas por governantes que são colocados lá pela sociedade civil. Ficamos escandalizados com o que vemos na TV, mas não fizemos nada. “Não vemos o que acontece como ofensa a irmãos nossos, mas como algo ligado à comunidade árabe.”
Por: Sueli Melo
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