Meu professor de francês é um refugiado

(CartaCapital, 25/09/2015) Na escola de idiomas Abraço Cultural, os professores são cidadãos de países como Haiti, Síria ou Congo

O Abraço Cultural é uma escola no bairro de Perdizes, em São Paulo, que ensina inglês, francês, espanhol e árabe. Seria mais um centro de aprendizado de idiomas, não fosse o quadro único de professores: dezesseis refugiados de diversos países, como Síria, Paquistão, Haiti e Cuba. Nas aulas, além da troca técnica sobre a língua, os estudantes têm a oportunidade de conhecer culturas e experiências pessoais.

Luiz Henrique Pécora, 26, coordenador do Abraço Cultural, explica que a intenção é inserir os refugiados na sociedade em longo prazo, promover a troca de culturas, minar preconceitos de ambos os lados e ainda gerar renda. “A ideia é tirar o estigma de alguém que está aqui como estorvo e precisa sempre da nossa ajuda”, diz.

Há quatro meses no Brasil, a síria Nour, 31, ensina inglês. “Muitas pessoas do mundo todo têm imagens estereotipadas sobre outros países, então é uma experiência preciosa poder falar sobre sua cultura e país, corrigindo esses desvios, e ainda poder aprender sobre o Brasil”.

Os cursos têm duração de três meses e começaram a ser oferecidos em setembro. Além das duas aulas regulares durante a semana, às sextas-feiras acontece a aula cultural, uma atividade interativa de culinária, dança e música.

“Os professores se animam porque mostram suas habilidades e a cultura do seu país, e os alunos querem saber mais e também falam sobre as diferenças em relação ao Brasil”, diz Luiz Henrique. “Isso reforça a ideia de que eles não são miseráveis que vieram para cá fugindo de um crime, como muitos acreditam. São pessoas com muito conhecimento e uma formação variada, de aprendizado técnico a doutorado”.

Mohamad Alsaheb, 35, conterrâneo de Nour, veio há um ano para o Brasil sozinho, fugindo dos conflitos em seu país e em busca de uma vida melhor. Lá, ele era especialista em animações e trabalhava para o canal infantil Spacetoon, equivalente ao Cartoon Network. “Não é fácil atuar em sua profissão ao sair do país, você precisa de conexões. Mas sou bom em inglês e tenho experiência em ensinar”, conta Alsaheb, que fez questão de ressaltar sua gratidão aos brasileiros e ao governo: “eles são muito generosos”.

A paulistana Uolli Briotto, 26, é formada em Relações Internacionais e estuda francês com um professor do Congo. Já estudou o idioma antes em escolas tradicionais, mas cansou do método. “A gente sempre falava sobre a França, Paris e outras regiões francesas. Então encontrei no Abraço uma alternativa para continuar aprendendo de forma mais motivadora e interessante. Por exemplo, na aula passada ouvimos músicas tradicionais do Congo, algo que dificilmente teríamos acesso de outra forma”.

Raheel Shahbaz, 33, é outro dos professores. Ele veio do Paquistão há quatro anos e percebe algumas mudanças em relação à época em que chegou ao Brasil e agora. “Eu desembarquei aqui às 16h e fiquei até às 20h30 procurando alguém que falasse inglês e pudesse me ajudar. Mas acho que agora as coisas estão bem melhores, tem mais assistência e gente que fala outros idiomas”.

Quando pesquisou sobre outros países para morar, Shahbaz encontrou informações sobre o Brasil ser um país rico, com oportunidades de trabalho, mas ao chegar se deparou com uma realidade diferente. Apesar de melhor que o Paquistão, era bem difícil. Após um ano ilegalmente no Brasil, estava pronto para retornar à suas origens. Com a passagem em mãos, um rapaz no aeroporto disse para ele não desistir, ir a Brasília tentar o visto.

Com a ajuda do Caritás, regulamentou sua situação no país e conseguiu uma carteira de trabalho. No entanto, ficou mais difícil conseguir um emprego. “Antes eu trabalhava em qualquer lugar, mas depois, quando dizia que tinha uma carteira de trabalho, eles diziam ‘desculpa, você não fala português bem’, e muitas empresas não sabiam as regras para contratar estrangeiros”.

Em seu país de origem, ele trabalhou como administrador em ONGs de reabilitação de drogados, foi professor de design gráfico, tem experiência em programação e é formado em um curso de comunicação de massa, equivalente ao jornalismo. “É difícil sair do Paquistão porque a gente tem uma estampa de terroristas. Chegando aqui, queria estudar, mas é difícil estudar em português. Agora estou aqui no Abraço Cultural, que conheci por meio de uma reportagem na internet, e também dou aulas particulares”, diz o professor.

O Abraço Cultural surgiu a partir da união entre duas ONGs. Luiz Henrique conta que o Adus, Instituto de Reintegração do Refugiado Brasil, queria promover um curso de capacitação que promovesse a integração de refugiados, gerasse renda, e fosse contra o preconceito. O Atados buscava um projeto de engajamento contínuo que tivesse impacto em longo prazo na vida das pessoas, e assim surgiu o projeto.

Em agosto deste ano, segundo o Instituto de Migrações e Direitos Humanos, o número de asilados vivendo no Brasil chegou a 8,4 mil. Destes, mais de 2 mil vieram da Síria e receberam status de refugiados do governo brasileiro; é a nacionalidade com mais refugiados reconhecidos no país. No mundo, 59,5 milhões de pessoas foram obrigadas a se deslocar até 2014, sendo que 19,5 milhões eram refugiados, segundo o Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.

Luiz Henrique resume o espírito da iniciativa: “Quem sabe a gente não consegue integrar cada vez mais os refugiados de São Paulo e, por que não do Brasil?”.

Ingrid Matuoka

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