(Fórum, 05/01/2015) Eles andam de fronteira em fronteira, buscando um lugar seguro para reconstruir suas vidas. Homens, mulheres e crianças que – acuados pelo medo, perseguição ou fome – saem em travessias pelo deserto, pelo mar e por longas estradas a fim de encontrar um novo território que renove as suas esperanças. Alguns encontram proteção em abrigos de reassentamento, mas isso não restaura a dignidade de quem só tem incertezas sobre o futuro. Dependentes de ajuda humanitária, esses indivíduos sonham em recomeçar em outro lugar onde o ódio, a violência, a guerra e a miséria não determinem seus destinos.
Um plano de ação mais amplo para ajudar refugiados, deslocados e apátridas na América Latina e no Caribe foi divulgado nos dias 2 e 3 de dezembro, em Brasília, durante o Cartagena+30, evento da Organização das Nações Unidas (ONU). A discussão visa refletir sobre os progressos realizados, os desafios de proteção que o continente atualmente enfrenta e os vazios que possam existir no regime contemporâneo de proteção internacional, abordando-os de forma pragmática, flexível e inovadora.
O nome do evento é uma referência ao 30o aniversário da Declaração de Cartagena sobre Refugiados, que, naquela ocasião, reuniu especialistas governamentais e reconhecidos juristas de diferentes países da América Latina na cidade colombiana de Cartagena das Índias para debater os problemas de refúgio da região.
A nova discussão, agora no Brasil, visa criar a Declaração e Plano de Ação que servirá como um documento comum para responder, nos próximos 10 anos, a união dos desafios humanitários na região. “É um apelo para que se incentive a nível mundial a questão dos refugiados, já que cada vez mais pessoas precisam de abrigo e refúgio em outros países, nem sempre próximos de sua fronteira”, explica António Guterres, do Alto Comissário da ONU para Refugiados.
Já chega a 51,2 milhões o número de refugiados e deslocados internos, o maior número no mundo pós-2ª Guerra Mundial, segundo dados da Agência da ONU para refugiados (Acnur). Atualmente, os refugiados, apátridas e deslocados internos formam uma nação e, se fossem um país, esse seria o 26° maior do mundo. No último ano, a Acnur registrou 1,1 milhão de pedidos de asilo, o maior em 10 anos. Em todo o mundo, a nação de deslocados vem crescendo.
Desde então, os pedidos de asilo no país crescem exponencialmente, e com dados mais expressivos nos últimos três anos. Até outubro deste ano, já foram contabilizadas outras 8.302 solicitações. O número de refugiados reconhecidos também aumentou significativamente, já foram aceitos 2.032 pedidos, ressaltando uma presença maior do Brasil no cenário internacional.
Segundo Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça, “apesar de fatores históricos, questões fronteiriças e legislação migratória muito restritiva e que muitas vezes impede a concessão de vistos para entrar no país, a simples demonstração da procura de refugiados ao país é uma afirmação que a imagem do Brasil no exterior é de um país forte e capaz de proteger, por meio de suas instituições, os direitos das pessoas”.
Há refugiados de 79 nacionalidades vivendo no Brasil, sendo que muitos latino-americanos solicitam asilo. Em 2014, 1.218 colombianos foram contabilizados até outubro, ficando atrás somente dos sírios. Outros grupos são formados por senegaleses, congoleses, nigerianos, angolanos, bolivianos, entre outros. Na questão de gênero e idade, o percentual de mulheres refugiadas diminuiu de 20% entre os anos de 2010 e 2011 para 10% em 2013. Grande parte dos solicitantes é formada por adultos entre 18 e 30 anos (96%) e 4% dos pedidos são de menores de 18 anos, sendo 38% crianças entre 0 e 5 anos.
O Brasil é um dos poucos países que participam do Programa de Reassentamento do Acnur, isto é, acolhe estrangeiros que haviam conseguido refúgio em algum país, mas por algumas circunstâncias precisam migrar para um terceiro. Em 2013, dos 1.154 colombianos que estavam refugiados no Brasil, 360 eram reassentados vindos do Equador. O Acordo de Residência do Mercosul possibilitou que colombianos, argentinos, peruanos, paraguaios, uruguaios e chilenos solicitem residência permanente no Brasil e, por essa razão, os índices de pedidos de refúgios entre essas nações têm diminuído.
Em 2014, foram aceitos no Programa de Reassentamento refugiados do Sri Lanka e da Síria. Nos próximos anos há pretensões de expandir o programa para um maior número de casos extracontinentais, de modo a oferecer acolhida para deslocados de outras regiões.
Os conflitos no Oriente Médio, como a Primavera Árabe em 2011, além de guerras no Iraque e no Afeganistão, aumentou o número de pedidos de refúgios no mundo todo. No Brasil, a maior população de refugiados é composta pelos sírios: são 1.183 indivíduos que buscam um novo recomeço deixando para trás a escalada de violência que vitimou mais de 150 mil pessoas, entre elas crianças e jovens, após conflitos entre os rebeldes e as forças do regime do ex-presidente Bashar al-Assad. Os libaneses também têm buscado refúgio no país e já são 358 indivíduos reconhecidos no Brasil.
Os angolanos formam o segundo grupo mais expressivo de refugiados no Brasil, totalizando 1.067 pessoas. O motivo do deslocamento foi a longa guerra civil que durou 10 anos e foi encerrada em 2002. A Acnur solicitou que fosse cessada a condição de refugiados aos habitantes que deixaram o país, já que a situação está estabilizada. O processo está em curso e se espera que o número de refugiados angolanos diminua gradativamente. Os congoleses são os terceiros a pedir refúgio no Brasil, sendo que atualmente 784 pessoas vivem com status reconhecido em território nacional. O Congo passa por uma crise humanitária de grandes proporções em consequência dos embates entre governo e opositores do presidente Joseph Kaliba. Enquanto novas perspectivas de paz não surgem, os congoleses deixam o país em busca de um lugar melhor para viver.
Motivos que levam à fuga
As condições fixadas pela ONU para o pedido de refúgio são para “qualquer estrangeiro que possua fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião pública, nacionalidade ou por pertencer a grupo social específico e também por aqueles que tenham sido obrigados a deixar seu país de origem devido a uma grave e generalizada violação de direitos humanos”. Sendo assim, o refugiado passa a desfrutar dos mesmos direitos dos habitantes locais.
Apesar disso, alguns pedidos de refúgio são feitos mesmo que os motivos não estejam exatamente de acordo com as condições impostos pela Convenção de 1951.
Muitos refugiados atravessam oceanos ou cruzam fronteiras por terra para chegar ao território de países. É o caso dos haitianos que acabam vindo ao Brasil por vias terrestres da América Central. Eles não são refugiados por definição, são imigrantes que recebem um visto humanitário do governo. O motivo que leva os haitianos a buscarem refúgio no Brasil são os conflitos políticos, econômicos e sociais que foram agravados pelo terremoto ocorrido em 2010.
Guiados por coiotes, pagam um elevado custo, passando de fronteira em fronteira. Ao chegar em território nacional, procuram por instituições ou autoridades que possam abrigá-los. Na região Norte, em Manaus, não há centros de refugiados, mas a Casa do Imigrante de Jacamim acaba realizando esse papel. Jacamim é um pássaro amazônico que gosta de cuidar de filhotes de outros pássaros e simboliza o papel da instituição, onde é dada a primeira assistência com pequenos recursos, visando a regularização de documentos.
Os haitianos são bem acolhidos, mas nem todos os povos recebem o mesmo tratamento. “Muitos acabam se sensibilizando mais pela questão dos haitianos por conta do terremoto e da visibilidade da mídia. Diferentemente dos colombianos, em que há uma certa desconfiança e muitas pessoas não estão por dentro da guerra [narcotráfico] que eles enfrentam em seu território”, conforme afirma a socióloga e professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) Lúcia Puga.
“Cada vez mais estamos vendo um fenômeno do que chamamos de fluxos mistos, as rotas dos imigrantes não são necessariamente diferentes das rotas dos refugiados. São trajetórias feitas conjuntamente, por indivíduos em ambas as condições. Por isso, para a Acnur é importante que haja leis menos restritivas aos imigrantes porque também será um benefício aos refugiados”, declara Andrés Ramirez, representante do Acnur no Brasil.
Eventos como o Cartagena +30 tem como papel e desafio desmistificar preconceitos. Quando não é feito o tratamento adequado, com a integração social dos refugiados dentro do país destinatário, o que se observa é a formação de grupos excluídos dentro do seio social e do aumento dos casos de xenofobia.
Em razão do preconceito, os refugiados não conseguem empregos e tornam-se cada vez mais marginalizados na sociedade. Sem emprego, a segurança econômica e alimentar do refugiado fica ameaçada, pois assim ele não terá como sustentar nem a ele nem a sua família. Sofrendo um processo de exclusão duplo, primeiramente em seu território de origem e depois no território de acolhimento. Assim, os direitos básicos são violados, o que pode trazer consequências psicológicas catastróficas. “Quando você vê jovens refugiados e solteiros é uma coisa. Mas senhoras, pessoas com 50 anos, que tinham a vida toda estabelecida em um país e tiveram que abandonar tudo, inclusive suas famílias, é outra situação. É uma condição muito dura, as vezes elas não têm nem perspectiva de verem seus familiares novamente”, afirma Lúcia Puga.
As consequências psicológicas se manifestam na carência, no medo de ficarem sozinhas e até na falta de afeto, como um abraço. “Eu entrevistei uma moça refugiada que disse sentir falta de um abraço. Os refugiados são pessoas muito solitárias, não tem ninguém”, completa Lúcia. Por conta dessa fragilidade psíquica, muitos são expostos à condição de trabalho escravo e sofrem violência.
O direito dos refugiados
O refúgio é um direito dos estrangeiros garantido pela Convenção de 1951 estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, no Brasil, após ratificação da lei 9474/ 97 e a criação do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).
A lei 9.474, de 1997, foi pactuada com a ONU (Acnur) e a sociedade civil e ampliou o conceito de refugiado, incluindo também a pessoa vítima de violação grave e generalizada de direitos humanos. Ela indica rumos importantes para o trabalho e a assistência ao refugiado, inclusive em relação a sua saúde mental, além da proteção jurídica e social necessárias à integração.
A resolução permite que, após 6 anos do reconhecimento do refúgio, o refugiado possa receber o visto permanente, caso este tenha se integrado à sociedade brasileira e queira optar definitivamente pela residência no Brasil.
A Acnur também presta auxílio para subsistência, moradia, transporte, mas foca-se principalmente no aprendizado da língua, na capacitação e orientação profissional e propicia acesso ao microcrédito, através de parcerias. “Todos os subsídios necessários são feitos aos refugiados para que eles consigam se inserir na sociedade brasileira”, conforme explica o advogado e professor de Direito Internacional Luís Renato Vedovato*.
No entanto, o auxílio em dinheiro é realizado apenas por um período de no máximo dois anos. “O Estado e as autoridades competentes acreditam que dois anos é tempo necessário de adaptação. Porém, há casos em que isso não prevalece como verdade”, contesta Vedovato.
Um caso recente, que se enquadra no que foi dito pelo advogado, aconteceu em Mogi das Cruzes em 2012. Mahmoud Abu Zamaq, de 66 anos, foi obrigado a sair de Bagdá, a capital iraquiana, sob a mira de armas. Vir para o Brasil não foi uma escolha, mas uma necessidade, que já dura 5 anos. Junto com a mulher e dois filhos em um grupo de 57 palestinos, foram incluídos em programa de reassentamento para despatriados.
Depois de dois anos recebendo o subsídio prestado pela Conare e Acnur, parou de receber. “Com pessoas jovens isso funciona, porque têm condições de arrumar um emprego. Agora, alguém com 66 anos [hoje com 68 anos] dificilmente vai conseguir entrar no mercado de trabalho em um cenário diferente do seu país”. Felizmente, para a Acnur não existe desamparados. Por pressões da ONU, o ministério público federal teve que entrar com uma ação para garantir que essa pessoa continuasse a receber o benefício.
Este é um pequeno recorte dentre tantos casos que conseguiram um final feliz. Cada caso é singular e avaliado com cautela. “As leis existentes na América Latina e Caribe são as mais completas para refugiados”, afirma o atual Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, Antonio Guterres. “O Brasil é hoje um país exemplar por ter uma das legislações mais avançadas do mundo em matéria de refugiados e também por ter uma prática de proteção particularmente positiva, exatamente nesse momento em que tantos países adotam medidas restritivas em relação à proteção”, disse. Ele ainda ressalta que “é bom mostrar ao mundo os exemplos que devem frutificar e são merecidos de admiração de todos, como no caso brasileiro”.
Embora a maior preocupação esteja na proteção das pessoas e famílias vítimas da violência, não se pode deixar de lado as possibilidades de integração nos países de destino. A participação dos refugiados nos programas do governo é necessária para que tenham condições de ter uma integração social e econômica. Para tanto, precisam ser adotadas novas estratégias que visem à expansão de redes locais de integração, participação e direitos dos refugiados.
A proteção dos refugiados deve ser reconsiderada sob a luz de ideias mais humanistas, solidárias e que coloquem a segurança humana acima da segurança dos Estados. “Temos que deixar um mundo melhor do que encontramos”, sintetiza António Cançado, juiz da Corte Internacional de Justiça.
Por Elisa Espósito e Glória Branco
Acesse no site de origem: Um novo território para a nação dos refugiados e deslocados (Fórum, 05/01/2015)