Poder público e militância não estão prontos para apoiar refugiados LGBT (Brasil de Fato, 21/09/2016)

Em debate em São Paulo (SP), pesquisadores apontam a falta de visibilidade dessa população no Brasil

Além das vítimas de guerras e conflitos políticos ao redor do mundo, pessoas perseguidas por conta de sua orientação sexual e identidade de gênero também pedem refúgio ao Brasil. Esse grupo social se encontra ainda mais vulnerável que os demais refugiados, conforme analisa a psicanalista e socióloga, Ana Gebrim, que tem experiência atendendo imigrantes e solicitantes de refúgio.

“Não teve, até agora, políticas que integrassem as diferentes dimensões. A coordenação de migrantes e a coordenação LGBT da prefeitura [de São Paulo (SP)], ambas da Secretaria de Direitos Humanos, não possuem ainda ações conjuntas para atender essa população. O mesmo acontece no campo da militância: os movimentos LGBT acessavam muito pouco a população imigrante, o que os deixava desamparados. O poder público e os movimentos estão começando a ter engajamento com essa população, e o ideal é que isso cresça”, afirmou Gebrim.

De acordo com o bacharel em relações internacionais e mestrando em antropologia social Vitor Lopes Andrade, ainda não há estatísticas do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) sobre essa população, mas, de acordo com o levantamento realizado para sua dissertação, a maioria dos solicitantes de refúgio LGBT no Brasil são homens jovens que vêm sozinhos, principalmente da Nigéria e de Camarões.

“É lógico pensar que, se o número de solicitantes de refúgio cresce no geral, o número de solicitantes por orientação sexual e identidade de gênero também”, afirma.

Na terça-feira da semana passada (13), Andrade e Gebrim participaram de uma roda de conversa sobre o tema, que aconteceu no auditório da Defensoria Pública da União (DPU), em São Paulo (SP). A atividade foi promovida pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP/SEFRAS), um equipamento da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC).

Em nota, a secretaria afirmou que “a ideia do evento era exatamente levantar um diagnóstico da situação, pensar caminhos para abordar o tema e fomentar essa discussão”. Além disso, declarou que as coordenações de migrantes e LGBT estão organizando uma formação mútua sobre o tema, e que o Guia de direitos para a população imigrantes, que é traduzido em seis línguas, já inclui uma seção sobre direitos da população LGBT.

Segregação dupla
Para Ana Gebrim, os refugiados LGBT podem ser considerados “estrangeiros dos estrangeiros”. “Ficam à margem da margem, porque, muitas vezes, a orientação sexual e a identidade de gênero são criminalizadas no país de origem, e se integrar em um novo país entre as comunidades de mesma nacionalidade significa estar diante da mesma exposição e violência”, argumenta.

Com isso, argumenta a psicanalista, essas pessoas evitam solicitar serviços de assistência à população imigrante, justamente para não estar entre pessoas da mesma cultura e etnia.

Gebrim destaca que quanto mais criminalizada é a prática no país de origem, mais isso incide como sofrimento subjetivo para a pessoa. “É muito comum que as pessoas vivam estigmatizadas. Acho que uma questão que se coloca muitas vezes para alguns refugiados LGBT é ‘como é possível eu ser gay e da minha cultura de origem ao mesmo tempo?’. Porque não tem como não introjetar os valores culturais de origem que patologizam e demonizam a orientação sexual”, opina.

A escolha do Brasil como país destino também é uma questão que precisa ser estudada. Segundo um relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia, pelo menos 318 pessoas foram mortas vítimas de homofobia no Brasil em 2015.

Já um relatório de violência homofóbica, publicado em fevereiro deste ano pelo Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, destacou que ao menos cinco casos de violência homofóbica são registrados todos os dias no Brasil.

“O que mais tem me surpreendido é exatamente o paradoxo: essas pessoas vêm para cá porque tinham medo de serem agredidas, mas a situação que encontram aqui também é de violência. É uma contradição que um país tão homo/lesbo/transfóbico seja o destino almejado. Mas, quando a gente compara com a realidade dos países de onde elas vêm, há uma melhoria, porque aqui a homofobia não é institucionalizada como em outros 76 países ao redor do mundo, onde atos sexuais consentidos entre pessoas do mesmo sexo são puníveis com até prisão perpétua e pena de morte”, compara Andrade.

De acordo com a pesquisa do mestrando, os solicitantes de refúgio LGBT vêm para o Brasil por diferentes fatores. “Alguns conseguiram o visto durante a Copa do Mundo com mais facilidade. Outros conheceram o país nos últimos anos por causa da maior visibilidade no cenário internacional, principalmente durante o governo Lula, quando várias embaixadas foram abertas em países africanos. A possibilidade de o Brasil ser escolhido como destino também aumentou no contexto de fechamento de fronteiras na Europa”, enumerou.

Andrade também pontuou que algumas pessoas declararam ter levado em conta o fato de o país ter aprovado a união estável de pessoas do mesmo sexo em 2011.

Invisibilidade
A vulnerabilidade dessa população é tanta que algumas pessoas acabam escondendo sua sexualidade durante as entrevistas do processo de solicitação de refúgio, mesmo que este seja um dos motivos principais de sua imigração.

“Por exemplo: uma pessoa da Síria que é lésbica alega que veio somente por conta da guerra. Um homossexual nigeriano diz que está sendo afetado pelo Boku Haram. Dificilmente falam da homossexualidade. O fazem quando é o único motivo que podem usar para fundamentar o pedido de refúgio”, disse Andrade.

A insegurança com os próprios mecanismos de refúgio acontece independentemente das diretrizes mais recentes da ACNUR, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, que, nos últimos anos, confirmou as interpretações que incluem o temor de perseguição pela sexualidade ou identidade de gênero entre as justificativas de refúgio.

“Há quem diga que lá na Convenção de 1951, quando criaram o critério de grupo social, já teria sido possível a ideia de pessoas LGBT como refugiadas, mas isso não é consensual. Em 2002, o ACNUR lançou uma diretriz analisando que há precedentes em que se interpretou pessoas LGBT como grupos sociais ameaçados, e, em 2008, foi lançada uma diretriz que afirmava que elas devem sim ser entendidas como grupo específico, desde que tenham temor de perseguição no país de origem. Em 2007, já haviam sido lançados os Princípios de Jacarta. No princípio 23, confirmava-se a possibilidade de se pedir refúgio quando as pessoas não pudessem exercer sua orientação sexual e identidade de gênero no país de origem”, detalhou Andrade.

De acordo com Ana Gebrim, provavelmente muitos solicitantes de refúgio LGBT não sabem que sua condição permite o status de refúgio.

“A questão da solicitação de refúgio está sempre diante da capacidade de produzir uma narrativa da experiência e torná-la crível para se encaixar no status de refugiado. Chegar a um país novo e estar diante de novas instituições pode parecer bastante arriscado, e há práticas muito abusivas. Em países como a Inglaterra ou alguns do Leste Europeu, há relatos de dispositivos jurídicos para identificar os ‘verdadeiros LGBT’, como perguntar se a pessoa é ativa ou passiva na relação sexual, perguntar o gosto musical dela ou passar filmes pornôs e ver se ela fica excitada”, contou a psicanalista.

Contexto

Na última segunda-feira (19), os países-membros da ONU se reuniram com o objetivo de pensar em uma abordagem mais coordenada e humana para lidar com o aumento sistemático do fluxo de imigrantes e refugiados em todo o mundo.

Na reunião, foi aprovada a Declaração de Nova York, documento que tem sido criticado por entidades e movimentos pelos direitos dos refugiados por ser considerado vago e negligente em relação à urgência da situação migratória mundial.

Paralelamente, mais de 65 milhões de pessoas se encontram na situação de refúgio, sendo que somente no último ano, 5.7491 pessoas morreram tentando cruzar as fronteiras em diversas partes do mundo.

Dentre elas, há grupos sociais mais vulneráveis, como mulheres, crianças e pessoas LGBTs, que, em alguns casos, buscam refúgio por conta de sua própria condição, como mulheres vítimas de violência de gênero ou mutilação genital, crianças que sofrem maus tratos e pessoas LGBT perseguidas por sua sexualidade.

Júlia Dolce
Edição: Camila Rodrigues da Silva

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